Voc? pode ser um cin?filo experiente e acreditar que j? viu de tudo, dentro do g?nero ?filme de guerra?. Pois n?o viu. Pelo menos at? encarar de frente a obra-prima russa ?V? e Veja? (Idi i Smotri, URSS, 1985). Relato duro, seco e impass?vel do ataque nazista ? Uni?o Sovi?tica, em 1943, o longa-metragem transp?e para celul?ide as terr?veis mem?rias de inf?ncia do cineasta bielo-russo Elem Klimov, que sentiu na pele a viol?ncia da guerra. Gra?as a uma ousada tour-de-force de edi??o de som e opera??o de c?mera, Klimov foi capaz de alcan?ar e manter, do in?cio ao fim do espet?culo cinematogr?fico, um impressionante rigor formal, mesclado com alt?ssimo n?vel de emo??o. Ele produziu, assim, um dos espet?culos mais brutais e desconcertantes j? exibidos em uma tela de cinema. ? um filme que atinge o espectador direto no est?mago, com a for?a de um soco. Um filme que desorienta.
De fato, ?V? e Veja? ? uma daquelas obras de arte (igualmente visual e sonora) para as quais palavras parecem fr?geis, at? mesmo desimportantes. Descrever e analisar os in?meros m?ritos t?cnicos e cinematogr?ficos alcan?ados por Klimov s?o atos necess?rios, mas insuficientes para traduzir o enorme impacto emocional causado pelo longa-metragem. Antes de tudo, ? fundamental ressaltar que o diretor sovi?tico vai muito mais longe do que simplesmente ligar a c?mera e filmar atrocidades com boas condi??es de ilumina??o. Ele utiliza toda uma variedade de ferramentas e t?cnicas cinematogr?ficas, sempre ousadas e sofisticadas, para imprimir ? obra uma qualidade sensorial muito rara. Neste filme, o espectador n?o apenas assiste a cenas de viol?ncia gr?fica. Ele ? chamado a cheirar, ouvir e sentir, com o cora??o, a brutalidade insana da guerra. Ao final do espet?culo, a plat?ia ter? comungado, com o personagem principal, da descoberta f?sica e espiritual de um horror que jamais imaginava existir.
Antes de morrer, em 2003, Elem Klimov explicou que o objetivo de ?V? e Veja? n?o era contar uma hist?ria, mas mergulhar nas mem?rias de inf?ncia e tentar comunicar ? plat?ia a assombrosa confus?o de sentimentos ? p?nico, f?ria, tristeza, medo, horror ? que experimentou, enquanto a fam?lia tentava escapar da ofensiva alem? na Bielo-R?ssia (pa?s a oeste da R?ssia), em 1941. O objetivo, ambicioso para qualquer criador, foi plenamente alcan?ado. De fato, Klimov n?o se preocupa em contar uma hist?ria. Pelo menos n?o da maneira cl?ssica, com come?o, meio e fim, em que o protagonista atravessa uma jornada de dificuldades e sai transformado. A c?mera de Klimov, ao mesmo tempo brutal e elegante, r?stica e sofisticada, apenas acompanha as experi?ncias vividas pelo jovem campon?s Florya (Alexei Kravchenko), em um par de dias, na fase mais cr?tica da invas?o nazista ? regi?o.
Para reconstituir as lembran?as da guerra com a maior fidelidade poss?vel, Klimov n?o poupou esfor?os. Conseguiu verdadeiros uniformes militares nazistas, usou muni??o de verdade nas cenas de tiroteios e recusou a facilidade de filmar em est?dios, preferindo a imprevisibilidade das loca??es reais. Ele optou por filmar tudo em tomadas longas, que freq?entemente ultrapassam tr?s ou quatro minutos, sem cortes. O extraordin?rio uso da steadycam (equipamento especial que d? estabilidade ?s imagens captadas por uma c?mera fixa nos ombros de um operador), aliado ? execu??o perfeita de intrincadas coreografias, com a movimenta??o simult?nea de centenas de figurantes, deveria ser estudado em escolas de cinema, tamanha a perfei??o. Enquanto a c?mera passeia pelo meio de multid?es de camponeses aterrorizados e soldados enlouquecidos, temos a sensa??o de estar bem no meio da guerra, vivenciando tudo aquilo.
Este envolvimento emocional ? amplificado por uma engenhosa edi??o de som, que vai al?m do realismo puro e simples. Quando uma bomba explode ao lado de Florya, ele passa a ouvir um zumbido alto e insistente, que abafa quase completamente os sons naturais. As pessoas gritam bem ao lado dele, que n?o ouve. Steven Spielberg copiou esta t?cnica em na abertura de ?O Resgate do Soldado Ryan?, mas n?o teve coragem de lev?-la ao extremo, como faz Klimov. O diretor bielo-russo mant?m o zumbido em primeiro plano por cerca de 20 minutos, em que o espectador compartilha da desorienta??o e do terror que o rapaz sente. Di?logos e sons ambientes podem ser ouvidos, mas muito ao longe, bem atr?s de uma parede s?lida de ru?dos. O zumbido vai cedendo lentamente, como aconteceria na vida real. Al?m disso, o cineasta teve a grande sacada de mixar ao zumbido, de forma quase impercept?vel, trechos distorcidos de melodias de Mozart. A m?sica ? praticamente inaud?vel, mas atinge com for?a o subconsciente e contribui para elevar a experi?ncia sensorial da guerra a um n?vel de horror puramente emocional, como pouqu?ssimos filmes j? ousaram fazer.
Como se n?o fosse o bastante, Klimov ainda mescla outros planos ?s longas e elaboradas. Planos diametralmente opostos: closes fechados dos rostos dos personagens mais importantes, de curta dura??o. O choque entre planos de est?tica t?o distinta amplifica ainda mais a dramaticidade das cenas (? a mesma t?cnica utilizada por Sergio Leone para real?ar o drama nos filmes que ele dirigiu, embora o italiano transforme o drama em melodrama ? de alto n?vel ? gra?as ao uso da m?sica, o que n?o ocorre aqui). Ao falar, os personagens quase sempre olham fixamente para a c?mera, se dirigindo diretamente ao espectador. Trata-se de uma t?cnica infal?vel para gerar envolvimento emocional na plat?ia ? seria o equivalente cinematogr?fico de agarrar um membro da audi?ncia pela camisa e pux?-lo para dentro do filme.
Ao conjunto dessas t?cnicas, todas maravilhosamente executadas, deve-se agregar ainda a atua??o absolutamente sobrenatural do jovem ator Alexei Kravchenko, cuja express?o petrificada, de olhos esbugalhados, parece conter toda a dor do mundo. Em algumas cenas, ele foi hipnotizado para que o diretor conseguisse extrair dele rea??es de puro terror. Al?m disso, o elenco de an?nimos, com rostos duros e vincados, express?es sofridas e o olhar permanente de quem est? encarando a morte sem esperan?as, tamb?m brilha intensamente. Os atores e figurantes desconhecidos emprestam dignidade e verdade a seq??ncias que parecem encapsular toda a insanidade e a viol?ncia da mais est?pida e genocida de todas as guerras registradas pela Hist?ria humana.
Apesar de longa e desconfort?vel, a experi?ncia emocional provocada por ?V? e Veja? ? poderosa. H? diversas cenas antol?gicas: o banho de chuva na floresta, em meio a pequenos arco-?ris provocados pelo reflexo da luz entrando pela copa das ?rvores, quase um momento de al?vio antes de a tempestade de fogo realmente come?ar; a recusa de Florya em aceitar o destino da m?e e das duas irm?s, que culmina com um passeio emocionalmente arrasador por dentro de um p?ntano de lama; a destrui??o de um vilarejo rural por uma tropa de soldados alem?es, auxiliados por aterrorizados bielo-russos que vestem trajes nazistas; e a incr?vel seq??ncia da vaca (melhor n?o falar mais nada sobre ela, e deixar que voc? assista com seus pr?prios olhos).
Al?m delas, atente para a engenhosidade do pol?mico final, em que Florya empunha um rifle e atira repetidamente contra um retrato de Hitler, que b?ia em uma po?a d??gua. Em paralelo, a montagem arrojada contrap?e imagens reais da II Guerra Mundial, rodando ao contr?rio. Enquanto o rapaz dispara contra a imagem do ditador, o pr?prio rosto dele aparece refletido na ?gua, misturando-se ? face do l?der nazista. Klimov parece querer dizer que os dois homens, quando dominados pela f?ria, tornam-se perigosamente id?nticos, porque se despem de todos os tra?os de humanidade. ?V? e Veja? (o t?tulo ? uma cita??o do Livro do Apocalipse, e funciona tamb?m como um adequado apelo ao espectador mais c?ticos) nunca teve grande repercuss?o no mundo ocidental, mas foi visto pelas pessoas certas e ecoou fortemente dentro da filmografia de Hollywood sobre a guerra ? o argumento de ?Imp?rio do Sol? e o final de ?A Lista de Schindler?, com a fic??o fundindo-se ? realidade, foram inspirados diretamente pela obra-prima russa.
A Lume Filmes lan?ou o longa-metragem no Brasil com boa qualidade de ?udio (Dolby Digital 2.0) e imagem com enquadramento original preservado (ou seja, com aspecto 1.37:1).