Uma mulher est? sentada escrevendo carta ao seu grande amor. Ela n?o tem as pernas. Enquanto ouvimos o texto escrito, narrado em off, entra um enfermeiro que faz curativo num dos restos de perna da mulher. Algo acontece. Come?a a jorrar sangue incessantemente. O enfermeiro tenta, por cinco minutos e sem sucesso, conter a sangueira. A mulher ignora, ainda escrevendo a carta.
A cena, ?nica em toda a dura??o do curta-metragem, ? de A Amputada (1974). Resume ? perfei??o o cinema de seu autor, o diretor americano David Lynch. Toda a obra de Lynch se fixa na premissa t?o brevemente desenvolvida em A Amputada: personagens jogados em situa??es nas quais eles n?o t?m nenhum controle e, exatamente por isso, acabam expostos a todo tipo de bizarrice e acontecimentos fora do que seria chamado de normal ou convencional. Em Lynch, o que move esses personagens ? a busca por amor e afeto. Na impossibilidade de alcan?arem objetivo t?o nobre, eles mergulham em atmosferas de pesadelo, muitas vezes lidando n?o com for?as externas ao seu mundo, mas justamente com ang?stias, anseios e medos de si pr?prios, sentimentos anteriormente presentes e agora extravasados. N?s, espectadores, testemunhamos esse extravasamento, um v?mito de del?rios que sai da cabe?a das cria??es de Lynch. ? como se o diretor apenas nos colocasse a par dos acontecimentos no p?s-acontecimento, naquilo que vem depois, sem se importar muito em apresentar o pr?, o fato anterior.
Diz-se muito que a autoralidade de uma obra, especialmente a cinematogr?fica, est? na capacidade do realizador de criar universos bastante particulares, de fazer brotar das imagens em movimento e dos sons em profus?o realidades que, dentro da tela, tenham suas caracter?sticas pr?prias e, nem por isso, deixem de refletir o universo exterior ? no caso, o mundo dito ?real? que est? ao redor de quem assiste ao filme. Nesse sentido, David Lynch poderia entrar no rol dos autores. E disso, creio, n?o h? muitas d?vidas ? menos pelas propaladas ?confus?es? de seus filmes do que devido ? genialidade em esculpir os tais mundos tipicamente lynchianos, o que n?o significa serem mundos de mentira ou de fantasia.
Uma outra marca de autoralidade tamb?m pode ser a recorr?ncia de tem?ticas e olhares. Mais uma vez Lynch se enquadra, e aqui chegamos ao ponto nevr?lgico deste artigo: voltar a Eraserhead, primeiro longa-metragem de David Lynch, e buscar os elementos que ele j? plantava e que seriam trabalhados dali em diante. O lan?amento do filme em DVD, via distribuidora Lume Filmes, nos permite atentar para as peculiaridades expostas por Lynch a cada fotograma. Eraserhead, ali?s, antes de ser um filme perturbador, ? um filme perturbado ? ou, mais do que isso, ? o filme de um homem perturbado. Reza a lenda que o diretor fez este trabalho num per?odo conturbado de sua vida: a namorada engravidou sem que o beb? fosse planejado; e, para complicar, a crian?a nasceu com os p?s deformados. Munido do trauma de ser pai fora do tempo e ainda lidar com um beb? portador de defici?ncia f?sica, Lynch lutou por cinco anos para levar Eraserhead ?s telas, auxiliado por uma bolsa do American Film Institute em Los Angeles.
Percebe-se, portanto, que o filme carrega, desde antes de sua exist?ncia, aura profundamente pessoal de Lynch. Se pensarmos no que veio em seguida (como O Homem-Elefante, Veludo Azul, A Estrada Perdida, Cidade dos Sonhos), ? expl?cito o quanto o diretor manteve-se fiel ao esp?rito de sua obra original, sempre acrescentando novos elementos e jamais deixando de falar, ao mesmo tempo, de si mesmo e do mundo ?real?. Eraserhead traz carga pesad?ssima de imagens inc?modas, a come?ar pelo visual do filme ? um preto-e-branco que parece retratar algum n?o-lugar habitado por n?o-pessoas que tentam seguir em frente numa n?o-vida. ?, em todos os aspectos, universo de negativismo e pessimismo, onde tudo parece ir contra todos. Logo nos minutos iniciais, o protagonista Henry (Jack Nance) surge caminhando por f?bricas insuportavelmente barulhentas. Uma s?rie de gags potencialmente c?micas faz o que podem para atrapalhar esse caminho: a po?a de lama, a porta e as luzes do elevador, os cachorros. Mesmo quando chega ? casa da namorada, Henry n?o consegue estar em paz. A fam?lia da mo?a ? cheia de disfuncionalidades, o galeto em seu prato ganha movimento pr?prio ao ser cortado (!) e a m?e de sua pretendente o assedia descaradamente (num movimento imediatamente reconhec?vel de Cora??o Selvagem, realizado 13 anos depois).
Todas as barreiras enfrentadas por Henry o deixam absolutamente sem controle do ambiente onde transita. A perda total desse controle se dar? com a not?cia de que a namorada teve um filho ? ou, como a m?e diz, ?uma coisa que est? no hospital?, no que a garota retruca ?ainda n?o sabemos se ? mesmo um beb?, m?e!?. O olhar aparvalhado de Henry (e o nariz que sangra ao saber da not?cia da crian?a) ? a s?mula de toda a galeria de personagens de Lynch ? e tamb?m da perplexidade de seu p?blico diante de um cinema t?o especial. Vale atentar ainda para a curiosa semelhan?a f?sica de Henry (e seu cabelo "esculpido" para cima) com Lynch em pessoa.
As gags v?o se acumulando. Agora casado, Henry ? rejeitado pela esposa na cama, e o beb? n?o passa de um monstrinho embrulhado em algo que mais parece gaze do que fronha. O uso do som, outra forte caracter?stica de Lynch, se configura como primordial. O choro do beb?, cada vez mais alto e estridente, provoca a ruptura com a m?e e o fim do casamento. Paralela e continuamente, ouvimos o barulho das m?quinas que insistem em jamais parar. E a trilha sonora permanece constante, sem algo que possa ser chamado de ?m?sica?, e sim uma nota grave e cont?nua que serve de inc?modo crescente. O uso desse tipo de trilha, tanto os sons externos (em que, aqui, destacam-se a chuva, o ranger de dentes e a desesperadora co?ada de olho) quanto a nota cont?nua, foram tornando-se algumas das marcas t?picas de Lynch, absolutamente indispens?veis para o tipo de sentimento que seus filmes costumam transmitir (inclusive na antologia Rabbits, em que a c?mera fixa ? muito potencializada pelo uso dos barulhos e da nota musical agonizante).
Incr?vel como, numa pequena dura??o de pouco menos de 90 minutos, Eraserhead consiga provocar tantos momentos de falta de respiro. A opress?o de Henry ? o seu pesadelo, e Lynch filma isso sem qualquer tipo de preocupa??o em parecer sensato. Uma das grandezas do filme ? justamente mergulhar (de cabe?a) nos riscos, sem pretender dosar ou dourar quaisquer situa??es lan?adas na imagem. Disso, ali?s, Lynch nunca teve medo. A frui??o de seus filmes depende muito do grau de riscos que eles nos fazem sentir. Se por vezes um Cora??o Selvagem pode parecer excessivo na s?rie de cita??es e refer?ncias, A Estrada Perdida s? ? o grande trabalho que conhecemos porque Lynch desrespeitou todos os limites. Se em Imp?rio dos Sonhos transparece o paroxismo do que de mais ?estranho? o diretor ? capaz de fazer, Hist?ria Real tem na sua aparente simplicidade uma s?rie de desafios ao ?bvio que s? mesmo um artista como Lynch, disposto a destruir tabus, regras e manuais, poderia realizar com tamanha economia de recursos ? e ainda assim soar aut?ntico.
Lynch est?, a todo instante, em busca de uma imagem de si mesmo. Existe em seus trabalhos a recorr?ncia de personagens que se enxergam ? ou que enxergam no outro alguma parte pr?pria que desconheciam. Eraserhead traz isso ? tona quando Henry v? seu reflexo transmutado em outra figura, numa cena-chave de defini??o (ou indefini??o) total de rumos. Na s?rie televisiva Twin Peaks, o agente Dale Cooper sonhava consigo mesmo envelhecido ? e, naquela condi??o, ouvia da pr?pria assassinada Laura Palmer o culpado da morte dela. Tanto em A Estrada Perdida quanto Cidade dos Sonhos e Imp?rio dos Sonhos, o personagem que se metamorfoseia em outro, ou mesmo que olha para a pr?pria imagem dentro de um outro contexto, surge quando h? a quebra, a ruptura, tanto dos caminhos percorridos por essas pessoas quanto do filme enquanto objeto narrativo ? ? no embate entre o ?eu? e o ?outro eu? que se d? o embaralhamento est?tico e conceitual que provoca o t?pico curto-circuito de um filme de Lynch, ainda mais catalisado pela inser??o de sonhos que parecem servir quase como epifanias que servir?o de chaves para os enigmas propostos nos filmes (mas jamais chaves ?bvias e bem resolvidas; pelo contr?rio: sonhar, num filme de Lynch, pode revelar verdades, mas n?o ? das experi?ncias mais agrad?veis).
A imagem de um palco tamb?m tem carga forte na transfigura??o de personagens. E l? est? em Eraserhead o devaneio de Henry assistindo a uma criatura esquisita dan?ando e cantando num palco. Mesmo no preto-e-branco, ? poss?vel imaginar as cortinas vermelhas id?nticas ?s de onde dan?a o an?o de Twin Peaks (no mesmo del?rio do agente Cooper mais velho) ou canta ardorosa e falsamente a artista do Club Silencio de Cidade dos Sonhos ? para n?o falar de Isabela Rosselini hipnotizando o p?blico ao entoar ?Blue Velvet? em Veludo Azul. ? de espet?culo, afinal, que tamb?m fala David Lynch (o deformado explorado pelo cientista em O Homem-Elefante, a ind?stria de Hollywood como o inferno na Terra em A Estrada Perdida, Cidade dos Sonhos e Imp?rio dos Sonhos, as estripulias sensacionalistas do casal apaixonado de Cora??o Selvagem, a citada cantora de cabar? de Veludo Azul, os coelhos e as claques da s?rie Rabbits). E para representar espet?culos, nada mais significativo do que um palco e algu?m cantando, dan?ando ou simplesmente se apresentando (ou sendo apresentado) nele.
O que subverte a vis?o espetaculosa das situa??es expostas nestes filmes ? o car?ter falso desses mesmos espet?culos. O homem-elefante ? um monstro de circo aos olhos dos outros, mas ? um ser humano, na verdade, repleto de ang?stias e vontade de viver; a cantora de Veludo Azul encanta quem a ouve, mas sua vida pessoal ? um redemoinho desenhado com os piores tra?os poss?veis. Em especial a trilogia sobre o espet?culo formada por A Estrada Perdida, Cidade dos Sonhos e Imp?rio dos Sonhos ? toda ela formada por quebras do que viria a ser a imagem real do sucesso e da ilus?o de Hollywood. Em todos eles h? um intenso questionamento do que ? visto na tela, e de fato nada do que assistimos parece ser de verdade. As fitas do casal de A Estrada Perdida, a interpreta??o quase ing?nua de Naomi Watts em Cidade dos Sonhos e o decl?nio absoluto da personagem de Laura Dern pr?ximo aos mendigos na Cal?ada da Fama (para, em seguida, escutar o grito de ?corta?, revelando o artif?cio de uma cena constru?da e previamente modelada) caracterizam a no??o de Lynch de que Hollywood ?, sim, a terra dos sonhos, fantasias e devaneios, mas que, justamente por alimentar tal no??o, torna-se um mundo de pesadelos, desilus?es e assombros dos mais inacredit?veis ? e dif?ceis de serem entendidos e recodificados inclusive por n?s, espectadores. ?N?o h? banda?, repete por diversas vezes o apresentador do Club Silencio.
Como um bom filme de Lynch, ? sempre dif?cil parar de desenvolver id?ias ao falar deles ? e olha que o ponto inicial era Eraserhead, e veja at? onde chegamos. Se foi discutido no come?o a carga autoral de Lynch lan?ada desde o primeiro longa (para ser mais exato, valeria dizer desde o primeiro curta, Six Men Getting Sick, em 1966), vale registrar trecho de um depoimento dado pelo cineasta ao jornalista franc?s Laurent Tirard, publicado no livro Grandes Diretores de Cinema:
Ningu?m gosta de se repetir e ningu?m gosta de fazer sempre a mesma coisa. Mas, ao mesmo tempo, cada um tem gostos que lhe s?o pr?prios, que s?o mais ou menos pronunciados e dos quais se ? mais ou menos escravo. (...) S? podemos mergulhar em um tema, em um personagem etc se realmente estivermos apaixonados por eles. ? como uma mulher. Ora, alguns homens s? gostam das louras e se recusar?o, conscientemente ou n?o, a ter rela??es com morenas. At? o dia em que encontrarem uma morena pela qual sentir?o amor ? primeira vista e tudo mudar.
Marcelo Miranda (www.filmespolvo.com.br)